“Saber do mundo”: educação e crise em Grande sertão: veredas
Há em Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, uma figura poética a respeito da educação em tempos de crise que nos parece oportuna neste momento. O sertão de Rosa é, grosso modo, um espaço de crise; ali o sertão escapa da estrita delimitação geográfica, aparecendo a nós, nas diversas definições oferecidas por Riobaldo, como um lugar de instabilidade: “Sertão é isto, o senhor sabe: tudo incerto, tudo certo”[3];; “Sertão é quando menos se espera”[4]; ou, nas palavras de Benedito Nunes, é “[…] onde não se pode saber o que vale e o que não vale, antes da decisão e da ação, o Grande-sertão, que ninguém encontra quando procura, é o espaço da errância em que o homem se perde para encontrar-se”[5]. Neste lugar de crise no qual se passa a narração de Riobaldo, a educação pode ser pensada a partir de vários episódios. A discussão, ao final do livro, entre Riobaldo e Zé Bebelo a respeito de quem foi, de fato, mestre de quem, deixa claro que o assunto educativo não é desprezível na labiríntica narração de professor-jagunço. Aproveitando desse espaço que a narrativa dá para o educativo, gostaríamos de olhar para um episódio específico de Grande sertão tendo em mente uma questão que nos concerne largamente: o que é educar em um momento de crise? Ou, se ficarmos no vocabulário de Rosa, o que é educar no sertão?
Trata-se do episódio do encontro do professor-narrador com o menino Guirigó. Riobaldo o encontra pela primeira vez no povoado de Sucruiú, lugar acometido pela malária e varíola, assim o descrevendo: “Tão magro, trestriste, tão descriado, aquele menino já devia de ter prática de todos os sofrimentos (…) O couro escuro dele era que tremia, constante, e tremia pelo miúdo, como que receando em si o que não podia ser bom”[6]. A situação precária do menino faz Riobaldo dizer que “Jagunço distraído, vendo um desses, do jeito, à primeira, era capaz da bondade de desfechar nele um tiro certo, pensando que padecia de agonia, e que carecesse dessa ajuda, por livração”[7]. Ao reencontrá-lo, pouco depois, agora já como líder do bando, Riobaldo resolve levar consigo o menino. Após algum tempo, quando já estão quase encontrando Hermógenes e seus jagunços, Riobaldo vê com alegria o menino e explicita as razões pelas quais o levou consigo: “o menino Guirigó, de ver mais que todos, tocou cá para adiante, com gritos e arteirices, tão entusiasmável; como tanto aprovei, porque o menino Guirigó do Sucruiú eu tinha botado viajante comigo era mesmo para ele saber do mundo”[8].
O que chama a atenção neste episódio é que a resposta de Riobaldo diante da situação de iminente morte do menino Guirigó não é a sua oposição vida; se assim o fosse, seu gesto seria somente o de alimentá-lo. O que ocorre aqui é de outra ordem. O gesto de Riobaldo não responde à iminente morte com vida, mas a visível desumanidade com mundo. Mundo no diapasão arendtiano[9] significa aqueles vínculos que ao mesmo tempo permitem que os indivíduos se relacionem, mas também preservam a capacidade que têm de agir, de falar ou pensar por conta própria. É nesse mundo comum que podemos perceber o “olhar protetor e iluminador da continuidade humana para além da voracidade natural a que estamos todos submetidos”[10].
O gesto do narrador não se dá em um lugar qualquer, nem em um momento qualquer. É no meio do sertão, em meio a uma guerra, que o professor-jagunço resolve fazer o menino Guirigó saber do mundo. Ele decide se responsabilizar pelo menino, coloca-se em posição de educa-lo em meio à crise de um mundo que se desertifica[11]. A educação parece ser a tentativa frágil, pela precariedade do mundo que nos encontramos, de acolher os novos em meio às incertezas de uma guerra. Em tais condições a pergunta que se coloca é a de que gesto seria possível para que pudéssemos acolher os novos em um mundo comum. A resposta de Riobaldo é contundente: levar o menino consigo para ele passe a partilhar de determinado mundo comum com aqueles jagunços, tornando-o viajante. Não sabemos por quais desventuras íntimas passou Guirigó e por meio de quais reviravoltas internas mudou sua disposição em relação ao mundo. Sabemos que ele mudou ao partilhar uma caminhada, saindo em visita a um mundo que, longe de idílico, estava em guerra.
Tal contexto de Grande sertão, oportuno para pensarmos nas desventuras da nossa crise contemporânea, apresenta Riobaldo encarnando três figuras fortes: o jagunço, o professor e o narrador. Se as duas últimas têm relação inconteste com o mundo comum, a primeira está irremediavelmente ligada ao agir, àquele que aprende as veredas em meio ao grande sertão. A resposta de Riobaldo, não unívoca, mas interrogativa como um gesto, é dada em ato. Diante de um mundo comum errante e esfacelado o que se pode fazer é partilhar uma caminhada. Tal atitude é pareada com o gesto narrativo. Trazer os novos consigo, em caminhada durante a guerra, é possibilitar a narração daquele mundo, oferecer um olhar peculiar a respeito dos significados que o sertão inóspito, pouco humano diante das inúmeras opressões, poderia ter. Tal como o narrador, o professor pode ser compreendido como um elo entre o mundo e aqueles recém-chegados, e aqui não é demais lembrarmos que Riobaldo recebe, de Zé Bebelo, a alcunha de “professor”, e assim é chamado por este ao longo de todo o romance. O professor, recolhendo as estórias do mundo e contando-as aos novos, espécie de “narrador do mundo”[12], convida-os a compreender que tal mundo, ainda que em guerra, lhes diz respeito.
[1] Este texto é uma versão ligeiramente modificada constante na dissertação “Milagre em Monte Santo: a fundação da Escola Família Agrícola do Sertão”, veja a versão completa: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-14052019-114621/pt-br.php
[2] Mestre em Filosofia e educação pela Feusp, membro do Grupo de estudos e pesquisa sobre educação e o pensamento contemporâneo (Geepc).
[3] ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015. p. 136.
[4] Idem, p. 238.
[5] NUNES, Benedito. A Rosa o que é de Rosa: literatura e filosofia em Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Difel, 2013. p. 162.
[6] ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015. p. 325.
[7] Idem.
[8] Idem, p. 434.
[9] ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2017. p. 27.
[10] ALVES AGUIAR, Odílio. A amizade como amor mundi em Hannah Arendt. O que nos faz pensar, [S.l.], v. 19, n. 28, p. 131-144, dec. 2010. ISSN 0104-6675. Disponível em: <http://www.oquenosfazpensar.fil.puc-rio.br/index.php/oqnfp/article/view/315>.
[11] ARENDT, Hannah. A promessa da política. Rio de Janeiro: Difel, 2008.
[12] ALMEIDA, Vanessa Sievers de. Educação em Hannah Arendt: entre o mundo deserto e o amor ao mundo. São Paulo: Cortez, 2011. p. 219.