A formação escolar e um convite a conhecer o mundo

Por Anyele Giacomelli Lamas[1] [2] 

Emília respondeu com uma pergunta que me espantou. Por que não me arriscava a tentar a leitura sozinho?
Longamente lhe expus minha fraqueza mental, a impossibilidade de compreender as palavras difíceis, sobretudo na ordem terrível em que se juntavam. Se eu fosse como os outros, bem; mas era bruto em demasia, todos me achavam bruto em demasia.
Emília combateu a minha convicção, falou-me dos astrônomos, indivíduos que liam no céu, percebiam tudo quanto há no céu. Não no céu onde moram Deus Nosso Senhor e a Virgem Maria. Esse ninguém tinha visto. Mas o outro, o que fica por baixo, o do sol, da lua e das estrelas, os astrônomos conheciam perfeitamente. Ora, se eles enxergavam coisas tão distantes, por que não conseguiria eu adivinhar a página aberta diante dos meus olhos? Não distinguia as letras? Não sabia reuni-las e formar palavras? [3]

 Falar em formação escolar evocando uma lembrança de Graciliano Ramos, para quem “Não há prisão pior que uma escola primária do interior”[4] pode soar estranho. O suplício das horas imóveis nos bancos escolares, a percepção de que ele não era capaz de compreender nada daquilo. Realmente, o que encontramos em algumas passagens de Infância, publicado em 1945, sobre sua experiência escolar indica-nos uma relação de grande tensão entre Graciliano e a escola. Contudo, o que buscarei ressaltar dessa breve passagem não é o que o menino Graciliano, de 9 anos na ocasião rememorada, nos revela sobre a escola. É sobre a pergunta feita por sua prima Emília que pretendo lançar luz. Quando Graciliano começa a se interessar pela história de um livro, mas sente-se incapaz de continuar a leitura sem a mediação de seu pai que lhe apresentara o livro, pede à prima que lhe dirija a leitura, que o ajude a conseguir acessar aquela coisa tão preciosa que seu pai lhe apresentara. Emília, talvez sem entender o pedido de alguém que conhecia as letras e sabia formar as palavras, questiona por que ele não se arriscava a tentar a leitura sozinho?

A pergunta surtiu no menino o efeito de um convite. Um convite que ninguém antes havia feito a ele e que denota a crença de Emília na capacidade do primo. Se os astrônomos podiam ler no céu, por que ele não conseguiria ler seu livro sozinho? Mesmo Emília não representando para Graciliano algo que remeta à sua experiência escolar, é no sentido do convite feito por ela que entendo a formação escolar: como um convite ao conhecimento e à fruição do mundo, aqui entendido no sentido atribuído por Hannah Arendt.  Em A condição humana[5], ela descreve o mundo como produto da “obra de nossas mãos”, como artifício tipicamente humano composto por todas as coisas (de objetos de uso a obras de arte) produzidas pelos homens e que confere estabilidade para suas vidas individuais por ser construído para servir como sua morada na Terra.

Acredito que professoras e professores estão numa posição privilegiada para dirigir às crianças pergunta semelhante àquela que Emília dirigiu ao primo e podem, com isso, convidá-los a conhecer e a fruir qualquer obra e qualquer linguagem produzida pelos homens. Para que as crianças possam se sentir participantes do mundo ao qual foram trazidas pelo nascimento, faz-se necessária a mediação dos adultos, não no sentido de que estes traduzam a elas suas impressões e interpretações sobre os objetos e sobre a realidade. Mas no sentido de que sejam colocadas em contato com as linguagens e as criações humanas, com as obras de arte e com os textos, em suma, com as obras da inteligência humana, como diria Jacques Rancière em O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual[6].

Rancière defende a opinião de que todos somos igualmente capazes de ler e de interpretar os artefatos e as linguagens do mundo à nossa própria maneira, ao defender que, em termos de capacidades intelectuais, somos todos iguais. Para ele, “quem reconhece (…) que todo homem nasceu para compreender o que qualquer homem tem a lhe dizer conhece a emancipação intelectual”[7]. Segundo o autor, a escola da sociedade pedagogizada estabelece a igualdade como fim do processo “emancipador”, como um objetivo a ser atingido: de que os incapazes aprendam algo que antes não sabiam. Entretanto, essa mesma escola não cessa de reproduzir a desigualdade que “pretende” reduzir, pois está inserida numa lógica embrutecedora que só faz confirmar uma incapacidade pelo próprio ato que “pretende” reduzi-la, eternizando a desigualdade.

Não é difícil pensarmos como tal lógica se efetua cotidianamente nas práticas escolares quando nos colocamos na posição de explicar algo aos alunos, acreditando no poder emancipador de nossas explicações. O que, muitas vezes, não percebemos ao proceder dessa forma é que, de fato, não acreditamos que os alunos sejam capazes de compreender por sua própria conta e, assim que os interpelamos com nossas explicações “emancipadoras”, reafirmamos o abismo entre sua ignorância e nossa suposta sabedoria. Muitas vezes, interrompemos o árduo trabalho de tradução e de comparação dos signos e das linguagens no qual os alunos estão envolvidos, direcionando sua compreensão para uma interpretação acerca de um objeto: a única interpretação que consideramos possível ou correta. Impossibilitamos, com isso, que os alunos se reconheçam como sujeitos capazes de fazer suas próprias e singulares traduções e interpretações sobre os artefatos e linguagens que constituem o mundo e os mantemos na eterna posição de seres incapazes.

Rancière propõe a substituição da lógica do sistema explicador para o qual sempre há um incapaz que necessita da instrução e da explicação de um capaz, pela lógica da emancipação que reconhece todos como igualmente capazes. Em outros termos, o autor propõe a inversão de uma lógica embrutecedora como lógica da instrução e confirmação de uma incapacidade produzida pelo próprio ato que pretende reduzi-la para uma lógica de ensino que force uma capacidade que se ignora ou que se nega a se reconhecer como tal, desenvolvendo todas as consequências desse reconhecimento, lógica emancipadora, portanto. Rancière é enfático ao afirmar que tal inversão não diz respeito a uma questão de método, já que qualquer método pode servir para produzir e confirmar a desigualdade ou para, ao contrário, reconhecer e afirmar a igualdade. Todo método pode ser, em suma, emancipador ou embrutecedor, a depender do princípio atualizado no ato do ensino: o da igualdade ou da desigualdade.

Para Rancière, o papel do mestre ignorante é manter o aluno que busca por sua própria vontade em seu caminho, interrogando-o se buscou com atenção, se é capaz de relacionar essa obra da inteligência humana ao que já conhece. Como professores, talvez nos caiba fazer às crianças e aos jovens a pergunta de Emília, convidando-os a atravessar uma floresta de signos cuja saída nós próprios desconhecemos. Se o convite for aceito, inicia-se uma aventura intelectual que, embora não se descole da materialidade de cada palavra ou de cada signo comum, abre para eles a possibilidade de ressignificar as coisas do mundo à sua própria maneira. “Quem busca, sempre encontra. Não encontra necessariamente aquilo que buscava, menos ainda aquilo que é preciso encontrar. Mas encontra alguma coisa nova, a relacionar à coisa que já conhece”[8].

Acredito que a escola pode figurar como um espaço privilegiado em que as crianças podem se reconhecidas e se afirmar como igualmente capazes de se tornar falantes de qualquer língua humana a partir dos objetos comuns colocados diante delas nesse dispositivo que torna públicas as coisas do mundo. A igualdade a ser constantemente verificada na escola deve ser colocada, portanto, como o ponto de partida do processo formativo, e não como um ponto de chegada. Ainda que fora do espaço escolar as capacidades e incapacidades, competências e incompetências estejam tão intimamente vinculadas ao lugar que cada um ocupa na sociedade, no interior do tempo e do espaço escolar todos podem ser reconhecidos e afirmados como igualmente capazes e podem, então, aceitar ao convite que lhes dirigimos bem como Graciliano aceitou o convite de Emília.

E tomei coragem, fui esconder-me no quintal, com os lobos, o homem, a mulher, os pequenos, a tempestade na floresta, a cabana do lenhador. Reli as folhas já percorridas. E as partes que se esclareciam derramavam escassa luz sobre os pontos obscuros. Personagens diminutas cresciam, vagarosamente me penetravam a inteligência espessa. Vagarosamente.
Os astrônomos eram formidáveis. Eu, pobre de mim, não desvendaria os segredos do céu. Preso à terra, sensibilizar-me-ia com histórias tristes, em que há homens perseguidos, mulheres e crianças abandonadas, escuridão e animais ferozes[9]

Talvez um “mero” convite imbuído da crença de que o outro é capaz de iniciar uma jornada intelectual possa levá-lo a tomar coragem, a aceitar correr o risco para percorrer esse caminho de consequências imprevisíveis. Assim como a jornada iniciada por Graciliano não o levou ao céu dos astrônomos, talvez enquanto professoras e professores, o que nos caiba seja justamente trazer nossos jovens e nossas crianças de volta a terra, com suas “histórias tristes”, com as mortes programadas ou por descaso, com suas “mulheres e crianças perseguidas”, com os horrores promovidos por tiranos, com sua “escuridão e [seus] animais ferozes”. E talvez seja a partir da leitura dessas nossas coisas tão terrenas que consigamos também abrir uma possibilidade para esses recém-chegados ao mundo se sensibilizarem com tanta injustiça e maldade, mas também com muitas das belezas que os homens são capazes de criar.


[1] Professora de Ensino Fundamental I pela rede privada de São Paulo, mestre em Educação pela FEUSP, graduanda em Filosofia pela FFLCH. Contato: anyele.lamas@usp.br

[2] Este texto é uma versão modificada constante na dissertação “Por um sentido formativo da arte numa ‘sociedade de consumidores’: uma inserção no pensamento político de Hannah Arendt e Jacques Rancière”. Para acessar a versão completa, acessar https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-08092015-150622/publico/ANYELE_GIACOMELLI_LAMAS.pdf

[3] RAMOS, Graciliano. Infância. Rio de Janeiro: Editora Record / Altaya, 1982, pp. 190 e 191.

[4] Idem, p. 188.

[5] ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011.

[6] RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. 3ª ed. 2ª reimp. São Paulo: Autêntica, 2013.

[7] Idem. P. 138.

[8] Ibidem, p. 57.

[9] RAMOS, Graciliano. op. cit. , p. 191.

“Saber do mundo”: educação e crise em Grande sertão: veredas

Por Denizart Fazio [1] [2]

Há em Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, uma figura poética a respeito da educação em tempos de crise que nos parece oportuna neste momento. O sertão de Rosa é, grosso modo, um espaço de crise; ali o sertão escapa da estrita delimitação geográfica, aparecendo a nós, nas diversas definições oferecidas por Riobaldo, como um lugar de instabilidade: “Sertão é isto, o senhor sabe: tudo incerto, tudo certo”[3];; “Sertão é quando menos se espera”[4]; ou, nas palavras de Benedito Nunes, é “[…] onde não se pode saber o que vale e o que não vale, antes da decisão e da ação, o Grande-sertão, que ninguém encontra quando procura, é o espaço da errância em que o homem se perde para encontrar-se”[5]. Neste lugar de crise no qual se passa a narração de Riobaldo, a educação pode ser pensada a partir de vários episódios. A discussão, ao final do livro, entre Riobaldo e Zé Bebelo a respeito de quem foi, de fato, mestre de quem, deixa claro que o assunto educativo não é desprezível na labiríntica narração de professor-jagunço. Aproveitando desse espaço que a narrativa dá para o educativo, gostaríamos de olhar para um episódio específico de Grande sertão tendo em mente uma questão que nos concerne largamente: o que é educar em um momento de crise? Ou, se ficarmos no vocabulário de Rosa, o que é educar no sertão?

Trata-se do episódio do encontro do professor-narrador com o menino Guirigó. Riobaldo o encontra pela primeira vez no povoado de Sucruiú, lugar acometido pela malária e varíola, assim o descrevendo: “Tão magro, trestriste, tão descriado, aquele menino já devia de ter prática de todos os sofrimentos (…) O couro escuro dele era que tremia, constante, e tremia pelo miúdo, como que receando em si o que não podia ser bom”[6]. A situação precária do menino faz Riobaldo dizer que “Jagunço distraído, vendo um desses, do jeito, à primeira, era capaz da bondade de desfechar nele um tiro certo, pensando que padecia de agonia, e que carecesse dessa ajuda, por livração”[7]. Ao reencontrá-lo, pouco depois, agora já como líder do bando, Riobaldo resolve levar consigo o menino. Após algum tempo, quando já estão quase encontrando Hermógenes e seus jagunços, Riobaldo vê com alegria o menino e explicita as razões pelas quais o levou consigo: “o menino Guirigó, de ver mais que todos, tocou cá para adiante, com gritos e arteirices, tão entusiasmável; como tanto aprovei, porque o menino Guirigó do Sucruiú eu tinha botado viajante comigo era mesmo para ele saber do mundo”[8].

O que chama a atenção neste episódio é que a resposta de Riobaldo diante da situação de iminente morte do menino Guirigó não é a sua oposição vida; se assim o fosse, seu gesto seria somente o de alimentá-lo. O que ocorre aqui é de outra ordem. O gesto de Riobaldo não responde à iminente morte com vida, mas a visível desumanidade com mundo. Mundo no diapasão arendtiano[9] significa aqueles vínculos que ao mesmo tempo permitem que os indivíduos se relacionem, mas também preservam a capacidade que têm de agir, de falar ou pensar por conta própria. É nesse mundo comum que podemos perceber o “olhar protetor e iluminador da continuidade humana para além da voracidade natural a que estamos todos submetidos”[10].

O gesto do narrador não se dá em um lugar qualquer, nem em um momento qualquer. É no meio do sertão, em meio a uma guerra, que o professor-jagunço resolve fazer o menino Guirigó saber do mundo. Ele decide se responsabilizar pelo menino, coloca-se em posição de educa-lo em meio à crise de um mundo que se desertifica[11]. A educação parece ser a tentativa frágil, pela precariedade do mundo que nos encontramos, de acolher os novos em meio às incertezas de uma guerra. Em tais condições a pergunta que se coloca é a de que gesto seria possível para que pudéssemos acolher os novos em um mundo comum. A resposta de Riobaldo é contundente: levar o menino consigo para ele passe a partilhar de determinado mundo comum com aqueles jagunços, tornando-o viajante. Não sabemos por quais desventuras íntimas passou Guirigó e por meio de quais reviravoltas internas mudou sua disposição em relação ao mundo. Sabemos que ele mudou ao partilhar uma caminhada, saindo em visita a um mundo que, longe de idílico, estava em guerra.

Tal contexto de Grande sertão, oportuno para pensarmos nas desventuras da nossa crise contemporânea, apresenta Riobaldo encarnando três figuras fortes: o jagunço, o professor e o narrador. Se as duas últimas têm relação inconteste com o mundo comum, a primeira está irremediavelmente ligada ao agir, àquele que aprende as veredas em meio ao grande sertão. A resposta de Riobaldo, não unívoca, mas interrogativa como um gesto, é dada em ato. Diante de um mundo comum errante e esfacelado o que se pode fazer é partilhar uma caminhada. Tal atitude é pareada com o gesto narrativo. Trazer os novos consigo, em caminhada durante a guerra, é possibilitar a narração daquele mundo, oferecer um olhar peculiar a respeito dos significados que o sertão inóspito, pouco humano diante das inúmeras opressões, poderia ter. Tal como o narrador, o professor pode ser compreendido como um elo entre o mundo e aqueles recém-chegados, e aqui não é demais lembrarmos que Riobaldo recebe, de Zé Bebelo, a alcunha de “professor”, e assim é chamado por este ao longo de todo o romance. O professor, recolhendo as estórias do mundo e contando-as aos novos, espécie de “narrador do mundo”[12], convida-os a compreender que tal mundo, ainda que em guerra, lhes diz respeito.


[1] Este texto é uma versão ligeiramente modificada constante na dissertação “Milagre em Monte Santo: a fundação da Escola Família Agrícola do Sertão”, veja a versão completa: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-14052019-114621/pt-br.php

[2] Mestre em Filosofia e educação pela Feusp, membro do Grupo de estudos  e pesquisa sobre  educação e o pensamento contemporâneo (Geepc).

[3] ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015. p. 136.

[4] Idem, p. 238.

[5] NUNES, Benedito. A Rosa o que é de Rosa: literatura e filosofia em Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Difel, 2013. p. 162.

[6] ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015. p. 325.

[7] Idem.

[8] Idem, p. 434.

[9] ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2017. p. 27.

[10] ALVES AGUIAR, Odílio. A amizade como amor mundi em Hannah Arendt. O que nos faz pensar, [S.l.], v. 19, n. 28, p. 131-144, dec. 2010. ISSN 0104-6675. Disponível em: <http://www.oquenosfazpensar.fil.puc-rio.br/index.php/oqnfp/article/view/315>.

[11] ARENDT, Hannah. A promessa da política. Rio de Janeiro: Difel, 2008.

[12] ALMEIDA, Vanessa Sievers de. Educação em Hannah Arendt: entre o mundo deserto e o amor ao mundo. São Paulo: Cortez, 2011. p. 219.

A luz de Luiz

Por José Sérgio Fonseca de Carvalho [1] [2]

Foi em uma entrevista de rádio, que ouvia displicentemente enquanto me dirigia ao trabalho, que pela primeira vez tive contato com a vida e a obra do poeta, advogado e militante abolicionista Luiz Gama. Uma professora e pesquisadora da Unifesp relatava de forma apaixonada a saga de Gama, nascido livre e vendido como escravo pelo próprio pai aos dez anos de idade. Por suas palavras soube que ele havia fugido do cativeiro e aprendido a ler e escrever aos 17 anos; que lograra libertar mais de 500 escravos, defendendo seus direitos; que fizera da luta pela abolição a causa de sua existência.

Ao chegar à universidade, abandonei as tarefas programadas para procurar mais informações sobre essa vida cuja grandeza eu ignorava, a despeito de tantos anos de escolarização. Li comovido seus poemas, me espantei com a coragem de seus discursos e chorei ao ler o relato de seu cortejo fúnebre. Vasculhava minhas lembranças das aulas de história e literatura sem qualquer sinal de sua presença. Em que estante o esconderam, Luiz? Lembrava, é verdade, da narrativa que meus professores fizeram um dia de homens viris, com suas botas e chapéus, enlouquecidos na caça por pedras preciosas, por índios e tudo mais que pudessem extrair desta terra para sua riqueza pessoal. Sabia que viraram estradas e avenidas, mas nem eu nem meus colegas – creio – jamais neles vislumbramos qualquer grandeza, nem deles retiramos qualquer sabedoria.

E qual não foi minha surpresa quando Moana me relatou que, entre os personagens negros que seu professor de artes sugeriu que ela e seus colegas estudassem, se encontrava precisamente Luiz Gama. Nos dedicamos – eu, ela e Diana – a reler seus poemas, a achar fotos de sua mãe, guerreira da Revolta dos Malês, e a compor um quadro sobre sua vida. Em sua redação simples, pessoal e singela, Moana destacava a importância de sabermos quem foi esse homem e por quais causas lutou. E, ao assim fazer, reiterava em mim uma crença fundamental acerca do papel das narrativas biográficas – tão desprezadas por certos intelectuais – na vida e na cultura escolar.

Narrar uma vida àqueles que acabam de chegar ao mundo – e que nele precisam achar seu lugar – é bem mais do que lhes fornecer um conjunto de informações. Ao relatar os dramas e conquistas de uma existência singular, mostramos a nossos alunos a diversidade de princípios que pode mover os humanos e orientar suas vidas. É nos atos e nas palavras de homens e mulheres que nos precederam – e não nas supostas estruturas e “leis” históricas – que jaz toda a grandeza e a vileza de que somos capazes.

Foi essa convicção que levou Hannah Arendt a afirmar que mesmo nos tempos mais sombrios temos o direito de esperar alguma iluminação. E tal iluminação bem pode provir menos de teorias e conceitos e mais da luz incerta, bruxuleante e frequentemente fraca que alguns homens e mulheres, nas suas vidas e obras, farão brilhar em quase todas as circunstâncias e irradiarão pelo tempo que lhes for dado na Terra. Em tempos sombrios como os nossos, pode bem ser da luta de um Luiz Gama que venhamos, tal como os habitantes do Brejo da Cruz, a nos alimentar de luz.


[1] Texto originalmente publicado na Revista Educação em dezembro de 2016

[2] José Sérgio Fonseca de Carvalho é doutor e mestre em Filosofia da Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), e graduado em Filosofia e em Pedagogia pela mesma instituição. Foi pesquisador convidado da Universidade de Paris VII-Denis Diderot, onde realizou seu pós-doutorado junto ao Centre de Sociologie des Pratiques et des Répresentations Politiques. Desde 2007 desenvolve pesquisas sobre os vínculos entre o pensamento político de Hannah Arendt e a educação no mundo moderno. Tem atuado na área de formação de professores com projetos vinculados à Secretaria Especial de Direitos Humanos e às redes públicas de ensino básico. É membro da Cátedra USP/UNESCO de Educação para os Direitos Humanos e do Grupo de Estudos em Temas Atuais da Educação, ambos sediados no Instituto de Estudos Avançados da USP.