Por Larissa Patrício Campos de Oliveira
Afinal, para que serve a educação[1]? Certamente, esta é uma indagação que não cabe apenas nos pensamentos e na fala daqueles profissionais que vivem cotidianamente “no chão da escola”, no jargão docente. De modo geral, o debate acerca da função ou ainda do objetivo da educação transborda qualquer limite que se queira a ele impor e torna-se com frequência tema de acaloradas e controversas discussões entre grupos de legisladores, pais, jornalistas, empresários, pesquisadores universitários, professores, alunos, entre outros.
Em tempos de pandemia como estes em que ora nos encontramos, talvez desponte com mais força uma resposta relacionada à necessidade de se mandar bebês e crianças para a escola afim de que seus respectivos responsáveis possam, então, se dedicar à conquista do sustento financeiro diário. Há, todavia, outras respostas também bastante usuais que podemos encontrar em diversos marcos legais de nosso país[2], bem como em currículos oficiais de redes de ensino[3], ou ainda em conversas despretensiosas a respeito, como: formar cidadãos críticos e conscientes, desenvolver competências e habilidades, diminuir as desigualdades, qualificar para o mercado de trabalho, ensinar a ler e a escrever, transmitir conhecimentos, garantir aprendizagens significativas, preparar para o vestibular, proporcionar socialização com outras pessoas fora do círculo familiar, emancipar sujeitos e assim por diante.
Não pretendo aqui deslegitimar todas essas aspirações e necessidades que recaem sobre a educação em nossos dias. Evidentemente, não é errado esperar que os alunos saiam da escola alfabetizados, capazes de escolher uma profissão para seguir e cientes de seus deveres e direitos como cidadãos de um país. Em uma nação marcada pela escravidão, pela restrição à cidadania, e pela exclusão histórica do acesso e permanência na escola imposta à maior parte do povo brasileiro, anseios como estes devem não apenas ser mantidos, como também ampliados.
Não obstante, a minha intenção neste breve texto é procurar expandir nossos horizontes de reflexão para além de uma compreensão da escola simplesmente em termos de “um lugar que se presta a tal ou tal objetivo”. O perigo de perdermos de vista a especificidade e insubstituibilidade que torna a educação escolar, ou as atividades educacionais realizadas entre professores e outros profissionais da educação e seus alunos dentro do contexto escolar, digna de ser defendida é assustadoramente real.
Mas qual seria essa especificidade da educação escolar e por que a escola não poderia ser substituída por outras tecnologias mais econômicas e efetivas? Ora, é perfeitamente plausível que crianças possam aprender a ler e a escrever sem necessariamente frequentarem a escola, assim como podem frequentar no contra turno ou acessar a distância cursos extracurriculares de informática ou de idiomas visando à capacitação para o mercado de trabalho, ou ainda socializar com outras crianças nas ruas do bairro. Seguindo esta lógica, se pensarmos que Pedrinho deve ir para a escola para aprender o abc, mas Pedrinho já aprendeu o abc em casa, então a escola se tornou supérflua para o menino? Ou, então, se a função da escola é proporcionar aprendizagens significativas para os alunos e Mariazinha não vê utilidade nenhuma para o seu futuro em saber mais sobre a Mesopotâmia ou sobre logaritmos, seria mais adequado à sua individualidade que ela pudesse se retirar e voltar para casa mais cedo?
Longe de pretender responder de modo definitivo a todas essas questões, o que proponho aqui é levantar algumas indicações que possam nos ajudar a refletir sobre possíveis alternativas às compressões hoje hegemônicas sobre o tema. Por isso, sugiro voltarmos à pergunta que inicia este texto (para que serve a educação?) e refletirmos sobre o seu significado. Quando fazemos uma pergunta do tipo “para que serve”, estamos, conscientemente ou não, pressupondo que o sujeito da oração (a educação) possui funções preestabelecidas que devem servir para determinado fim, que, por sua vez, deve ser descrito como objetivos concretos e mensuráveis.
Desta forma, a referida indagação escancara a percepção majoritária que acabou por se consolidar na modernidade: a escola e a educação escolar seriam meios ou instrumentos para o alcance de variadas finalidades. Trata-se do que Biesta (2019) denomina “atitude tecnológica em relação à educação” (p.101), uma postura bastante difundida que joga sobre a educação expectativas pesadas, como a construção de uma “nova ordem social” ou a contraposição à desintegração social (p.102). Neste quadro, a educação torna-se uma mercadoria e os próprios pais redefinem sua “posição como um dos consumidores das mercadorias-educacionais que as escolas devem suspostamente entregar.” (p.102). E quando, invariavelmente, a escola não consegue “produzir” os resultados como o esperado, dizem que ela fracassou em sua função.
Por isso, sugiro deixarmos de lado os questionamentos acerca da servidão ou subordinação do que se faz na escola a determinados fins e irmos em busca de um sentido possível para a educação. Recorro, então, aos pensamentos formulados por Hannah Arendt em seu célebre ensaio “A Crise na Educação” (2014a). Segundo a autora, quando nos propomos a atribuir um sentido à educação, liberamo-la da lógica violenta da fabricação[4] baseada em meios e em finalidades predeterminadas – para as quais a educação não é mais do que uma ferramenta –e passamos a nos questionar em nome do que educamos.
Para Arendt, o sentido da educação se encontra na responsabilidade que assumem os adultos em apresentar o mundo[5] às crianças e aos jovens, buscando não lhes privar da potência e da liberdade de agir no espaço público quando crescerem – privação esta que ocorre com frequência quando ditamos aos nossos alunos “para que serve” e “o que devem fazer” com aquilo que estudam e praticam na escola.
Tal liberdade, todavia, conforme compreendida por Arendt, não pode ser usufruída pelos sujeitos de modo individual, visto ser algo que se dá entre e no contato com outros. Daí provém a crítica de Hannah Arendt voltada à concepção de liberdade defendida por liberais e empregada com relação às atividades econômicas, à satisfação das necessidades biológicas, ao trabalho e às questões privadas de maneira geral, sempre em um universo semântico afastado da política. De acordo com o entendimento grego, no qual se baseia a análise arendtiana neste tocante, a liberdade para a ação, que pode se dar na direção da preservação ou da alteração, depende de mais de uma pessoa para ocorrer: alguém para iniciar e outro para dar continuidade.
Quando iniciamos uma ação, não é possível, pois, definirmos de antemão qual será o seu resultado, visto que este dependerá também de mais pessoas que, livremente, optarão por agir e dar prosseguimento ao processo em curso. As ações são sempre da ordem do indeterminado e do imprevisível. Não há de se confundir, assim, a intenção de Arendt em atribuir sentido à educação com uma tentativa de determinar sua finalidade, ou seja, um objetivo previsível previamente estabelecido, uma vez que o sentido se refere ao significado, e não ao seu fim.
De modo geral, a cultura ocidental moderna, pautada pelos princípios da sociedade liberal, é regida fortemente pelo apelo ao voluntarismo como expressão de uma racionalidade individualista que engendra o isolamento do eu e o narcisismo ao focar seus procedimentos em anseios individuais como potência capaz de determinar o destino de cada sujeito. A repercussão de tais premissas no contexto escolar evidencia-se na centralização de todo o processo educativo nas vontades, escolhas e preferências expressas pelos alunos de maneira individual, como se as salas de aulas não fossem mais do que lugar dedicado a cada sujeito em particular que lá vai apenas para aflorar o que já traz em germe em si desde que nasceu (cf. OLIVEIRA, 2018).
Hannah Arendt, contudo, nos oferece uma concepção de escola que caminha em sentido diametralmente aposto, na medida em que a caracteriza como o espaço de encontro entre o mundo e as pessoas. Este espaço deve ser protegido do consumo e do imediatismo, e ser capaz de manter afastados, ainda que temporariamente, os apelos mercadológicos e sociais, que sempre visam a transformar os conteúdos trabalhados em habilidades e competências empregáveis nas mais diversas situações vislumbradas. Por isso, a escola é, para Arendt, justamente onde os alunos têm a oportunidade de participar de atividades e conhecer temas que não precisam fazer ou conhecer, e onde a todos é dada a chance de atribuir significados novos ao mundo e nele deitar raízes.
Nesse sentido, para finalizar este breve esforço de pensamento, gostaria de citar uma passagem de Masschelein e Simons (2020), que ilumina com maestria aquilo que busquei indicar aqui. Para os autores, o estudo e a prática – as atividades próprias do escolar – tornam possíveis novas conexões, a descoberta de trilhas desconhecidas, precisamente quando são desenvolvidas sem que se tenha em mente um fim ou um propósito final:
Como sugere o dicionário, estudar é uma forma de aprender em que não se sabe, antecipadamente, o que se pode ou se vai aprender; é um evento aberto que não tem “função”. É um evento ilimitado que só pode ocorrer se não houver propósito de fim para ele e nenhuma funcionalidade externa estabelecida. É o conhecimento pelo bem do conhecimento, e habilidades pelo bem das habilidades, sem uma orientação específica ou um destino definido”. Pp. 91-92).
[1] Durante esta análise, utilizarei o termo educação sempre com referência à educação formal que se desenvolve nos espaços escolares.
[2] A este respeito, podemos citar o Artigo 2 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996), em que se lê: “A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.” (BRASIL, 1996).
[3] A título de exemplificação, O Currículo da Cidade, série de documentos normativos lançados pela Prefeitura do Município de São de Paulo a partir de 2017, traz em seu Introdutório (parte comum presente na publicação dos volumes de todos os componentes curriculares) do Ensino Fundamental o conceito de “Matriz de Saberes”, que contempla aquilo que as crianças e jovens “devem aprender e desenvolver” com o propósito de “[…]formar cidadãos éticos, responsáveis e solidários que fortaleçam uma sociedade mais inclusiva, democrática, próspera e sustentável.” (SÃO PAULO, 2017).
[4] Em A Condição Humana (2014b), Hannah Arendt faz uma análise fenomenológica das atividades humanas fundamentais – que compõem o que autora denomina Vita Activa (vida ativa) – buscando restaurar a sua proeminência filosófica em face à vida contemplativa. Arendt divide estas atividades humanas fundamentais em três categorias distintas: o trabalho – processo biológico do ser humano responsável por garantir a sobrevivência e a satisfação das necessidades vitais básicas; a fabricação– produção humana de obras capazes de ultrapassar a existência mortal de seu criador e que estão (à exceção das obras de arte) submetidas à lógica de meios e fins predeterminados (como a produção de uma cadeira, que servirá para se sentar); e a ação – testemunha da pluralidade dos indivíduos que coabitam um mundo compartilhado, cujas consequências não podem jamais ser previstas ou passíveis de controle total.
[5] Cabe destacar que, para Arendt (CARVALHO, 2014, p. 827), a noção de mundo possui uma significação preciso: refere-se ao artifício humano, ao lar imortal construído pela humanidade para dar abrigo à sua existência mortal. Deste modo, o mundo deve ser compreendido como análogo à Terra, lugar este destinado a ser um espaço vital em que a espécie humana, bem como todos os outros seres vivos, luta para sobreviver e se reproduzir. O mundo abriga a herança que nos foi deixada pelas gerações passadas e que pretendemos legar aos recém-chegados, que aqui se iniciam pela natalidade. Consoante o pensamento arendtiano, o mundo é uma construção propriamente humana, fruto das relações políticas entre homens quando estes se reúnem para tratar dos assuntos de interesse público e coletivo. Em um sentido mais estrito, pode ser compreendido como o conjunto das instituições e aparatos legais comuns e significativos a todos os participantes das comunidades políticas (CÉSAR; DUARTE, 2010, p. 3).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARENDT, Hannah.. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Editora Perspectiva S.A., 2014a.
______. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 2014b.
BIESTA, GERT. Para além da aprendizagem: Educação democrática para um futuro humano. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2020.
BRASIL. LEI Nº 9.394, DE 20 DE DEZEMBRO DE 1996. Aprova a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm.> Acesso em: 10/11/2020.
CARVALHO, José Sérgio F.. Política e Educação em Hannah Arendt: Distinções, Relações e Tensões. In: Educação & Sociedade. Campinas, vol. 35, n. 128, p. 629-996: Jul./Sept. 2014a.
CÉSAR, Maria Rita de A.; DUARTE, André. Hannah Arendt: pensar a crise da educação no mundo contemporâneo. In: Educação e Pesquisa, vol.36, n.3, Sept./Dec. de 2010. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-97022010000300012>. Acesso em: 28/01/2017.
MASSCHELEIN, Jan; SIMONS, Maarten. Em defesa da escola: uma questão pública. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2019.
OLIVEIRA, Larissa P. C. de. O Mundo Moderno e a Educação: uma reflexão acerca das contribuições de Hannah Arendt. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2018.
SÃO PAULO. Secretaria Municipal de Educação. Coordenadoria Pedagógica. Currículo da Cidade: Ensino Fundamental: História. São Paulo: SME/COPED, 2017.